maio 15, 2008

O tédio traiçoeiro de Amélia

Amélia era uma moça faceira, alegre, entusiasmada, sempre de posse de algo bom a dizer de todos, sempre de bom humor e cheia de positividade. Pode-se dizer que Amélia era uma moça cheia de vida, de uma vida promissora.

Mas a vida de Amélia dava sinais de mudança, sinais sutis de mudanças drásticas. Amélia começou a ter insônia.

Ela não conseguia dormir, já pelas tantas da madrugada seu cérebro ainda remoia rancores, raivas, arrependimentos e culpas tantas que foi obrigada a se levantar e tentar algo mais além de descansar.

Enquanto descia as escadas acarpetadas pode ouvir os sprinklers banhando o jardim da frente. Pensava turbilhosamente na morte que se anunciava. A sua própria. Pensava nos queridos entes que deixaria pra trás, inconformados e impotentes. Pensava também naqueles que aprendeu a odiar, graças aos esforços incansáveis destes mesmos em lhe dar motivos para tal. Amélia não conseguia perdoá-los. Jamais conseguiria. E ela sabia disso tão bem que lhe doía o corpo. Mas o pior de tudo é que Amélia sabia que jamais conseguiria perdoar a si mesma. Era tanta raiva que sentia e de tanta gente que ela sufocava só de pensar a respeito. Sua percepção já estava tão surtada, seus sentidos tão sobrecarregados que tudo o que ela esperava era poder dormir e esquecer de tudo ao amanhecer. Mas ela não conseguia dormir.

Insone, Amélia tentava fazer sentido de tudo em sua cabeça confusa. Paranóica e assustada, imaginava o que aconteceria se algo inusitado acontecesse, algo surpreendente e avassalador. Ela imaginava o que a faria surtar de vez.

Amélia lavava, passava, cozinhava, ia ao mercado, pagava as contas, ouvia os curtos monólogos do marido sobre o trabalho ou sobre os pais dele ou sobre a insana política local que fazia sua própria esquizofrenia parecer brincadeira de criança.

A faceira jovem tinha seus dias fartos, cheios, ocupados. De dar inveja às madames de vidas vazias que habitavam as vizinhanças mais abastadas. Mas Amélia era entediada, estava entediada, havia ficado entediada. Não sabia ao certo e não sabia tão pouco quando tal moléstia lhe havia acometido. E pra piorar, a dor de estômago que não lhe largava. Talvez fosse melhor assim, pensava. Algo pra lhe fazer sentir viva. Se ao menos doesse um pouco menos. Ou um pouco mais. O suficiente pra lhe passar batido ou pra lhe matar. Nada é perfeito. E tinha também aquela meia-dormência no seu lado direito. Que raio era aquilo não sabia, imaginava, mas ao certo não sabia, como tudo em sua vida. Nada sabia ao certo.

Indagava se as coisas seriam diferentes se ela tivesse botado a boca no trombone, deixado sair tudo o que a sufocava. Não. Ela disse até demais, considerou até demais, deu chances até demais. E isso a adoeceu. E ela sabia disso, mas negava. A si mesma Amélia mentia descaradamente dia após dia, comprimido após comprimido. E culpando a genética ela seguia.

O tempo é relativo. Apegada a moribundas memórias científicas, Amélia passou a observar o tempo, em sua forma mais relativa. Amélia passou a fitar o tempo alheio. O tempo de cada vizinho desapercebido de seu espaço e movimento. Amélia os observava viver, desperdiçar seu anos em toda a sorte de efemeridades, nutrindo-se de ilusões pra justificar sua sequência vital. Alheios à evolução de sua estupidez e do vácuo existencial que os digere lentamente. Quanta variedade de tempo! Pensou.

Ela só queria que as vozes em sua cabeça se calassem e a deixassem dormir. Mas as vozes insistiam, mudavam de assunto, voltavam ao assunto anterior sem pedir licença, aumentavam o volume, faziam replay. As vozes a mantinham acordada. Sempre. As vozes também a faziam querer fazer coisas das quais estava certa de que se arrepederia, mas ainda assim sentia um mórbido alívio em pensar sobre elas. E pensando em uma dessas coisas Amélia avistou um vizinho desavizado. Um moço, até onde se sabia, bom, honesto. Um desses que a polícia chama de inocente quando dá entrevista sobre o crime mencionando a vítima. Uma dessas presas disponíveis para caça.

Antes de estrangulá-lo, Amélia pensou sobre sua formação religiosa, sobre os domingos passados na igreja com a familia, décadas atrás. Ela tentou até cantarolar uma das canções que aprendeu quando criança, mas a relatividade do tempo também tem seus limites e a sua memória não guardara nem um único verso musical de som sacro-santo. Ao invés, ela libertou as vozes em sua cabeça e por alguns instantes deixou que discursassem em alto e bom som. Tão alto que ela nem mesmo chegou a ouvir os gritos de súplica de sua presa inocente. Tão alto que ela fechou os olhos pra que sua cabeça não martelasse tanto. Tão alto que suas mãos se travaram em um arco fatal ao redor da garganta do vizinho anônimo.

E depois de um espaço de tempo relativo, Amélia abriu os olhos e o policial que lhe encarava, rodeado de luzes vermelhas e azuis piscantes, lhe perguntava atônito "Por que?" e Amélia, com sua doçura costumeira respondeu quase que catatonicamente:

"Eu me senti tão entediada hoje...!"