junho 30, 2007

Desejou profundamente a morte

A comemoração da Páscoa já havia dado ao dia um ar de tédio que ele tentava disfarçar sorrindo e brincando com as crianças. A presença em peso da família, antro irrecuperável de traumas e feridas incuráveis, somente veio a piorar a sensação de fracasso. Encontrar os amigos à tarde seria um alívio se tivesse sido diferente, se eles ao menos compartilhassem de alguma perspectiva, se não se agredissem tanto, quase que por falta de opção, quase que por reação ao marasmo, quase sem perceber. O cotidiano viciado, oco, trôpego mais do que nunca estava insuportável e ainda mais para o amor, que não encontrava sequer frestas de luz para vislumbrar e que murchava na triste companhia de uma inspiração desmotivada; o frustrante lampejar de pequenas esperanças potencializando a ânsia, a repulsa e finalmente a raiva daquela existência vazia e inútil. Não havia portas, sótão, porão. Nenhuma saída, nada que ele pudesse imaginar ser capaz de reverter o seu estado crônico de solidão. Não, não era a solidão tradicional, porque muitas pessoas o cercavam e o importunavam. Era uma solidão de alma, um perpétuo descobrir-se só, desamparado, ermo; um eterno desiludir-se. Foi então que em princípios de outono, envolvido pelo crepúsculo frio da metrópole, por detrás da janela do 13º andar, ele desejou profundamente a morte. Não pode parar de imaginar como faria para eximir-se de existir. Aderiu a verdadeiros rituais de morte, bolando as cenas, trilhas sonoras, figurinos. Tudo deveria ser perfeito. A família choraria por ele. No trabalho todos ficariam perplexos: “ninguém poderia imaginar”. Os filhos eram pequenos, dois e quatro anos, não sentiriam sua falta tão cedo. Mas... e ela?

...

Derrame. Finalmente ela poderia desligar o aparelho que o mantinha respirando. Acompanhar aquele velho durante dois meses sem decidir-se entre a porta da vida e a escada pro céu a desgastara profundamente. Se pudesse escolher, estaria acampando no litoral, mas não era por ela que trabalhava na clínica de saúde, era pelos filhos. Buscava forças na família e nos poucos amigos que conseguira cultivar. Nenhum deles era muito encorajador, mas eram seus amigos... Ela se arrependera profundamente por não ter seguido a carreira artística de bailarina, por não ter se casado com o dono da gráfica da zona sul e por não ter aceitado a oferta indecente, porém estimulante, de seu antigo patrão, um alemão sisudo e bem mais velho. Não era um bom momento. Estava confusa com a morte recente do pai. Talvez em outra ocasião. Foi quando ele apareceu, cheio de amor, carinho e dívidas. Eles trabalharam muito, economizaram morando nos fundos da casa da mãe dele, pagaram as contas, tiveram dois filhos, entediaram-se, e permaneceram juntos. Sim, eles eram cúmplices de verdade. Compartilhavam tudo, de dores a... . Mas de repente, alguma coisa faltava, algo estava incompleto. Não para ela, era com ele. Ela o amava e, mesmo se não o amasse, isso não era importante, o que contava é se estavam juntos. Ele... ele a amava, mas não tinha mais certeza se estavam juntos, se queria estar, se devia. Questionava a própria existência!

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Não era mais possível. Ele não podia suportar mais. Decidiu-se por uma corda amarrada ao imenso lustre projetado do teto alto da sala da mãe. Não havia ninguém em casa, era uma quinta-feira sem graça e já que havia saído cedo do trabalho teria tempo para arranjar tudo antes que alguém chegasse. Cuidadosamente subiu em uma cadeira de forro de veludo vinho, amarrou ao lustre a grossa corda que encontrou no porão, desceu da cadeira, procurou seu disco predileto — O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky —, colocou-o na vitrola como quem deita um bebê no berço. Em seguida, foi até a mesinha de centro e apanhou um livrinho fino onde leu pela última vez o poema de Paul Geràld, Toi et Moi. Ele preparou-se para subir na mórbida cadeira de forro de veludo vinho, rumo ao desconhecido. Subiu. Cronometrando o que seria seu último suspiro, retirou o pé esquerdo de sobre a cadeira. Tudo como ele havia planejado. Um momento único de solidão, essa, agora, valiosa. Na iminência de retirar o pé direito, num gesto que o eximiria da vida... bruscamente uma multidão de caras conhecidas e repulsivas invadiu a sala ao som de Parabéns pra você desafinado. Milhões de línguas de sogra, chapeuzinhos e confetes preencheram seu campo visual de forma constrangedora, criminosa. Crianças correndo umas atrás das outras, caindo sobre os avós que tentavam acompanhar a fila dos cumprimentos em um passo visivelmente mais lento. Bolos, tortas, brigadeiros e copinhos de plástico cheios de refrigerante ocuparam o cenário de sua morte como um estupro, assassinando sua última esperança de encontrar algo novo. Os parentes e amigos vinham como soldados em posição de ataque para cumprimentá-lo pelos 33 anos de vida. No final da multidão de felicitantes, apoiada numa pilastra, ele avista ela, sorrindo por trás de um canapé de aliche, vestida de branco, recém chegada do trabalho. Finalmente, uma das almas sebosas da “festinha” alcança a vitrola com aquele comentário letal: - Ae! Gente. Vamo ouvi música de verdade, nessa festa, né? “...já sei namorar...”

...

Ela continua trabalhando na clínica e hoje cuida dele, catatônico desde seu último aniversário. De acordo com diagnóstico familiar, devido à possessão demoníaca, que o teria tornado propenso à autodestruição. Ele tem sido benzido com freqüência nauseante, mas não reage a estímulos, exceto aos provocados por ela que duas vezes por dia expõe seus ouvidos à audição do Lago dos Cisnes. Afinal, eles sempre foram cúmplices...

Lele Queiroz - SP: 2001 - At home!

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